As rajadas constantes disparadas pelos criminosos durante mega-assaltos a bancos colocam em pânico cidades de diversos estados do Brasil
Homens fortemente equipados com fuzis, granadas, coletes à prova de balas e até armas capazes de abater aeronaves. As rajadas constantes disparadas pelos criminosos durante mega-assaltos a bancos colocam em pânico cidades de diversos estados do Brasil.
“Novo Cangaço” ou “Ataque de Cidade”, como especialistas chamam as ações como a que ocorreu na madrugada desta terça-feira (1º/12) em Criciúma (SC) são cada vez mais comuns no Brasil, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Elas já foram registradas em Estados de todas as regiões do Brasil.
Na ação desta madrugada, uma quadrilha entrou na cidade com ao menos 12 carros, com placas adulteradas ou sem placas.
Eram cerca de 40 homens fortemente armados, segundo captaram as câmeras de vigilância da cidade. Uma “ação sem precedentes”, nas palavras do tenente coronel Dimitri, uma das autoridades da Polícia Militar que acompanham o caso.
Os criminosos atearam fogo a um veículo diante de um quartel da Polícia Militar, para dificultar a saída dos policiais. Houve troca de tiros com os PMs, e o soldado Jeferson Luiz Esmeraldino ficou ferido no abdômen (ele passava por cirurgias nesta terça, em situação de saúde descrita como delicada pelos colegas).
Mas o que o poder público pode fazer para conter tamanho poderio bélico e planejamento executado por dezenas de criminosos?
Diretor científico do Centro de Estudos da Metrópole da USP e autor do livro ‘Irmãos — Uma História do PCC’, Gabriel Feltran diz que antes de direcionar investimentos, é necessário entender o processo de transformações das facções, do universo criminal e do mundo da segurança.
Segundo ele, nos últimos 40 anos o Brasil investiu em uma única filosofia para a segurança pública: a polícia ostensiva. Ele explica que isso direciona o foco das ações apenas para prender pessoas. Isso superlotou as cadeias, onde surgiram as maiores facções do país, numa reação a essa política.
“Pequenos e grandes conflitos eram tratados com encarceramento. Muitos jovens encarcerados, em geral os pequenos operadores dos mercados (de ilícitos) e a cadeia funcionando como faculdade do crime. Ao longo desse processo, a gente vê o estabelecimento de facções, principalmente no Rio e depois São Paulo. PCC e Comando Vermelho se nacionalizando e internacionalizando durante os anos 2000”, afirmou.
O pesquisador explica que durante esse processo as facções tomaram o controle de mercados ilegais no atacado – tanto de drogas quanto de armas, contrabando e logística.
Feltran disse que, neste momento, as facções tiveram o que ele chama de “sede de água do mar”. E que mesmo com uma política ineficaz, no ponto de vista dele, governos insistem em investir no mesmo modelo de segurança pública há décadas.
“(Eles pensam) se tiver mais investimento na mesma direção, vai dar certo. (Pensam) em ter mais dinheiro para a Polícia Militar, mais dinheiro para a repressão de base. O processo que estava gerando as facções na cadeia é o mesmo processo que vai ser reforçado na segurança pública. No meu livro, eu chamo isso de máquina crime-segurança. Uma vai alimentando a outra. Quanto mais o crime cresce, você fala que precisa de mais investimento em polícia”, afirmou.
Ele diz que essas facções há 40 anos eram pequenos grupos desarticulados, mas que se fortaleceram dentro das cadeias por conta dessa política.
Ele diz que, ao ser presa, uma pessoa especializada em assalto a banco com uso em explosivos se junta a outra na cadeia que consegue adquirir carros e, posteriormente a uma que traz armas de países fronteiriços como o Paraguai.
As redes permitem a união desses recursos necessários para que eles possam ser colocados lado a lado e viabilizar ações como a de Criciúma.
“Isso permite que todo esse know-how possa enfrentar, em termos de guerra, as forças de segurança, que também pensam em guerra. Esse único modelo nos leva a esse ponto que estamos hoje”, afirmou o pesquisador.
Assimetria de poder de fogo
Os especialistas dizem que não é simples para os criminosos executarem ações como essas e que são poucas quadrilhas com conhecimento, poder financeiro e bélico capazes de fazer algo do tipo.
“São muitos e muitos anos de coordenação para chegar à sofisticação que tem hoje. É uma técnica usada que eles chamam de assimetria de poder de fogo, desproporção de uso da força. Você vai numa cidade pequena, que não tem a mínima condição de enfrentar um ataque armado com .50, fuzil e bazuca e põe uma ação única de 40 pessoas na madrugada. Isso pode ser em Londres, em qualquer lugar, que você não consegue segurar. Numa cidade do interior, muito menos”, afirma o especialista.
Feltran explica que a ação conta com uma desproporção de força muito grande para evitar a reação policial. Ele diz que esses grupos são espalhados pelo Brasil, mas conseguem se juntar para executar determinada ação.
“Essa é uma técnica militar. A mesma usada nas ocupações do Exército nos morros do Rio de Janeiro. Eu venho com uma desproporção de força tão grande que eu inibo qualquer tentativa de reação”, afirmou.
A pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará, Jânia Perla Aquino, que estuda as ações do “Novo Cangaço”, afirmou que essas ações também buscam chocar a população e causar um impacto psicológico, visual e sonoro.
“Nos roubos convencionais, você não tem essa postura de enfrentamento da polícia. Outra característica deles é a truculência. Os bandidos empurram pessoas, colocam fogo em instalações da polícia, fecham vias para evitar fugas. Deixam problemas de ordem estrutural nas cidades”, afirmou.
Ela lembra ainda o fato de os assaltantes usarem pessoas como escudo, o que “desencoraja a perseguição policial” para evitar a morte de inocentes.
“Isso mexe com o brio e até com a masculinidade dos policiais. Isso é tomado como algo desrespeitoso e afrontoso. Gera uma situação de guerra e anseio pelo enfrentamento. Desde o início dos anos 2000 acontecem essas ações e vem acumulando esse incômodo na polícia”, disse Aquino.
Como exemplo dessa vontade de combate policial, ela cita que as ações em que há combate terminam com muitas mortes. Ela cita o caso na cidade de Milagres, no interior do Ceará, que terminou com 14 mortes há um ano. Seis delas eram reféns.
Em Guararema, na Grande São Paulo, policiais da Rota mataram 11 assaltantes em uma tentativa de roubo a duas agências bancárias em abril de 2019.
O que fazer para evitar ações desse tipo?
As quadrilhas organizadas atuam com planejamento e poder bélico de grosso calibre nas ações feitas de surpresa em pequenas cidades na madrugada. Como é possível combater esse tipo de ação?
O pesquisador Gabriel Feltrin diz que é necessário mudar o modelo de segurança.
“Do ponto de vista técnico, é evidente que tem que ter um controle de armamento. Imagine esses caras sem armas, se eles iam fazer o que fizeram. É o oposto do que a gente tem caminhado”, disse ele.
Feltrin ainda aponta para um maior trabalho do setor de inteligência das polícias para evitar que ações ocorram.
“Para armar uma ação com 40 pessoas no interior, você tem que ter tido muita comunicação entre grupos. Esses grupos superespecializados não são muitos. As pessoas que estão ali já passaram por muitas situações na Justiça. É só ter investigação e vai evitar situações como essa”, disse o pesquisador.
Feltrin disse também que é necessário apurar os “mercados de proteção” pagos com o dinheiro desses roubos para viabilizar essas ações. Ele diz que em muitos casos os criminosos fazem pagamentos a profissionais da segurança que participam de alguma forma dessas ações, seja na execução ou no planejamento.
Para ele, é necessário também “ter circuitos articulados de resposta quando for necessário”.
“Fechar saídas da cidade, coisas técnicas. Não precisa de muito mais recursos do que já tem. O que precisa é repensar modelo de segurança que a gente tem que se nutre desses eventos”, disse à BBC News Brasil.
A professora da UFC Jânia Perla Aquino, que estuda as ações do “Novo Cangaço”, diz que outra estratégia para evitar esses mega-assaltos é reduzir o uso de dinheiro em espécie.
“O ideal é incentivar uso de cartão. Acredito que o uso do PIX (meio de pagamento eletrônico recém-lançado pelo Banco Central) inclusive também tem esse propósito. Quando você tem uma quantidade de dinheiro em espécie acumulada no mesmo lugar, isso atrai gente. E numa situação em início de mês, quando aposentados e pessoas recebem 13º, é impossível não fazer esse acúmulo”, afirmou
Ela disse que essa modalidade de crime também se tornou uma saída para as quadrilhas que praticavam assaltos a banco na década de 1990 após a instalação de portas giratórias e outros sistemas de segurança que dificultam as ações em agências.
Ela ainda ressalta que o impacto para a população de cidades pequenas após ações como essas é devastador. Isso porque, com receio de sofrerem novos ataques, os bancos fecham essas agências e a população passa a se locomover dezenas de quilômetros para fazer saques.
A pandemia, segundo ela, também facilitou a ação dos assaltantes, uma vez que os policiais muitas vezes são deslocados para fazer rondas para coibir locais com aglomeração de pessoas.Fonte:correiobraziliense